segunda-feira, 30 de junho de 2008

o homem que não chora

Nunca vi uma lágrima sua. Não me lembro. Presenciei, apenas, o polegar e o indicador pressionando o canto (aquele onde as remelas se acomodam) dos olhos. Lágrima mesmo, eu nunca vi. Calado. Sério. Nervoso. Brincalhão. Incapaz de demonstrar uma pequena fragilidade. Guia um pelotão em tempos de guerra, sem desviar do caminho nem pedir socorro. Engole seco as amarguras e derrotas que a vida lhe deu. Hoje, achei que ele fosse chorar. Seu rosto indicava isso. Sua boca começou a tremer. Estava tudo pronto. Era só deixar a água descer e molhar a pele. Mas, novamente, ele não chorou. Quem chorou fui eu.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

pé descalço


Avenida Paulista. Temperatura baixa. No vão livre de setenta e quatro metros do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, inaugurado em 1968 com projeto da arquiteta Lina Bo, as turmas se dividem entre casais de namorados, adolescentes, senhores e solitários. O vento é forte. Cabelos bagunçados, mãos que não saem dos bolsos. E gritos. Perto da bilheteria do museu, fundado em 1947 pelo empresário Assis Chateaubriand, dezenas de crianças dão o tom naquela tarde. Festival de cores que vibram assim como a energia dos pequeninos. Um garoto com pele cor de casca de amendoim veste um gorro azul e branco. Ele sorri das brincadeiras dos companheiros, mas seus olhos não acompanham, parecem que estão em outro lugar. Mais pro final da fila indiana, três meninas brincam de pega-pega, o que lembra um cachorro correndo atrás do próprio rabo. O uniforme azul, branco e amarelo revela que são alunos de uma escola municipal em São Bernardo do Campo. São duas turmas com cerca de trinta alunos e três professoras. Antes de entrar no museu, uma delas, a de aparência mais velha, aponta o dedo indicador na cabeça de cada criança para certificar de que nenhuma desapareceu. Ao final, sorri satisfeita. Os pequenos formam outra fila em frente a um dos elevadores e seguem até o segundo andar, onde acontece a mostra "A natureza das coisas", uma das quatro exposições organizadas com o acervo do próprio museu. São setenta obras que apresentam paisagens e natureza-morta de artistas da Europa e da América desde o século 17 até os anos 80.

Dentre tantos quadros, um me impressionou ao ponto de que o guarda que estava sentado à direita me pedisse para afastar e permanecer atrás da linha branca. Para ser sincera, eu não tinha notado aquela marcação. Coloquei meus olhos em direção à tela, pois queria apreciar de perto aquela pintura. Chama-se "A cachoeira de Paulo Afonso"(acima), em Pernambuco, 1850, por E.F.Schute. Procuro referências do autor no site do Masp e o texto diz "não há certeza quanto à nacionalidade de Schute". Segundo o site, ele pode ter sido alemão, austríaco ou suíço.

Próximo a essa belíssima obra, os estudantes estão sentados no chão e são incentivados a pensar por um instrutor do local. Alto, careca, óculos com grau, o homem dispara algumas perguntas:
- o que vocês estão vendo nesse quadro?
- vocês colocariam na casa de vocês?
- do que ele é feito?

Me coloquei ao lado dos alunos. Aquela abordagem me interessou. Imaginei, nos dias de hoje, o quanto não deve ser difícil atrair a atenção dessas crianças. Estimuladas por jogos eletrônicos e interativos, o que seria capaz de fazê-las parar?

E, de fato, o homem teve dificuldades. Uma ou duas crianças responderam. As outras nem sequer prestaram atenção. Brincavam com os coleguinhas ou olhavam para todos os lados. Bom, não deve ser fácil analisar um quadro do século passado. Acho que tudo que elas mais queriam era correr por aquele espaço vazio entre as telas. O que também não deixa de ser divertido.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

pedido de desculpas

Há dois dias penso em te escrever. Pego a caneta, aquela de tinta azul de sempre, um papel solto pela casa e sento. Me aconchego na poltrona vermelha que você adora. Tomo meu café e enquanto o líquido desce suavemente e quente pela minha garganta (cansada por não conseguir gritar), penso em como te escrever. Palavras soltas, idéias perdidas, lembranças que apertam o peito. Tudo me chega. Mas não tenho conseguido jogar com esse quebra-cabeça. As cartas mudaram, eu me perco e canso da brincadeira. Sim, eu sei que já joguei outras vezes. Mas lhe peço desculpas por nesse momento não te dar o que você merece, o que você espera. A vida é assim mesmo. A cada dia sinto que ela se parece muito com o mar. O dia da calmaria, onde tudo corre bem, tranqüilo. Pra quê mudar, não é mesmo? Mas quando o mar se aperreia, é melhor correr porque aí vem a tempestade. Semana passada comprei uma colcha de retalhos. Para embelezar a nossa cama e te ajudar a pensar sobre as cores na vida da gente. Imagina se tudo fosse branco e preto? Ainda bem que podemos conhecer o amarelo, o azul, o verde, o laranja, o vermelho...Me despeço e, já que não consigo te escrever, deixo algumas palavras de Mário de Andrade.
"(...) mas eu só queria saber neste mundo misturado quem concorda consigo mesmo! Somos misturas incompletas, assustadoras incoerências, metades, três-quartos e quando muito nove-décimos (...)"

terça-feira, 17 de junho de 2008

anotações na madrugada

eu, que de tanto sufocá-lo em minha suposta visão da certeza, hoje deixo que ele se vá. Vá e não precisa voltar. Suas memórias foram cimentadas na matéria que me dá forma neste mundo. Não preciso mais de rédeas, deixei de ser cavalo para assumir a postura de uma gaivota. Dessas que voam por aí e só sossegam quando o corpo emite um alerta de que algo não está bem. Um vôo aprendiz. consciente. racionalidade com uma pitada de ilusão. ilusão que acalma os sentidos. outra dimensão do mundo, necessária para sobreviver.